Menos da metade das pessoas que têm tuberculose e foram infectadas pelo vírus HIV tomam o remédio antirretroviral no Brasil. Apenas 41,8% dos pacientes de tuberculose com coinfecção por HIV fazem uso da terapia antirretroviral (TARV) no país, enquanto no mundo o percentual foi de 85%, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).
Quando associadas e não tratadas, as duas infecções podem provocar outras doenças e diminuir a sobrevida do paciente. Pessoas que vivem com HIV/aids no Brasil estão 28 vezes mais propensas a desenvolver a tuberculose, uma das doenças que mais matam no mundo e que ocupa a nona posição no ranking geral de mortes no mundo.
As informações constam do último relatório global da tuberculose elaborado pela OMS e divulgado no fim do ano passado. Segundo o documento, o Brasil está entre os 20 países com a maior carga de pessoas com tuberculose e infectadas com o vírus HIV. Em 2016, além do Brasil, outros cinco países tinham menos de 50% dos pacientes infectados pelas duas doenças em tratamento antirretroviral: Congo, Gana, Guiné-Bissau, Indonésia e Libéria.
“Quando a gente está com HIV sem tratamento, o HIV vai destruindo a imunidade no corpo da pessoa e aí abre as portas para a tuberculose, tanto pra pessoa se contaminar com o bacilo da tuberculose, quanto para, uma vez contaminada, desenvolver a doença da tuberculose”, explica o infectologista Rafael Sacramento, integrante da organização Médico sem Fronteiras.
No Brasil, a tuberculose é a principal causa de morte de pacientes que vivem com o vírus da imunodeficiência humana. De acordo com o mais recente panorama de mortalidade da tuberculose disponível no país, seis em cada dez das pessoas que morreram por HIV em 2014 tinham tuberculose como causa associada do óbito.
A OMS estima que ocorreram, em 2016, cerca de 1,3 milhão de mortes no mundo por tuberculose entre pacientes não infectados pelo vírus HIV e 374 mil mortes entre os soropositivos, o que corresponde a uma média de mil mortes por dia. No Brasil, no mesmo ano, foram mais de 5 mil mortes por tuberculose e quase 2 mil pela coinfecção tuberculose e HIV.
“Os desfechos [do tratamento da tuberculose] quando a pessoa tem HIV são muito ruins, porque continua tendo muito óbito. Tem um percentual de óbito, um percentual de perda de acompanhamento ou abandono e um percentual de falha, o que faz com que o tratamento não tenha uma eficiência boa”, relata a pesquisadora Valeria Rolla, coordenadora do laboratório de micobacterioses da Fundação Oswaldo Cruz.
Segundo o Ministério da Saúde, pacientes coinfectados com tuberculose e HIV que tomam os medicamentos 35% mais chance de cura e morrem 44% menos por tuberculose do que os pacientes que não usam a terapia. A OMS também ressalta que a maioria das mortes por tuberculose pode ser prevenida com diagnóstico precoce e tratamento adequado. A organização calcula que entre os anos 2000 e 2016 foram evitadas 53 milhões de mortes de pessoas que foram diagnosticas e tratadas com sucesso.
Tratamento e cura
Entre as pessoas diagnosticadas com tuberculose e HIV, há o desafio de garantir a total adesão à terapia antirretroviral (TARV) ou à terapia de combate à tuberculose. Seja por falta de acesso aos medicamentos ou por rejeição aos efeitos colaterais da terapia, muitos pacientes enfrentam dificuldades para seguir o tratamento de forma adequada.
A artesã Sandra Maria da Silva Gonçalo, de 37 anos, vivenciou a experiência de abandonar a terapia antirretroviral. Moradora de Beberibe, no Recife (PE), Sandra descobriu ser soropositiva em 2003 e sempre seguiu com rigor a rotina de tomar os medicamentos antirretrovirais. Mas há pouco mais de um ano, abandonou o tratamento por alguns meses e desenvolveu a tuberculose.
“Fiquei doente, a imunidade baixou, porque eu estava em depressão e terminei contraindo a tuberculose. Aí, eu me internei pra investigar, porque meu caso foi extrapulmonar. Quando é no pulmão é mais fácil diagnosticar, eu estava com todos os sintomas, mas não estava com tosse, não estava com secreção. Fiz todo o processo e bateria de exames pra poder vir descobrir que era no baço”, relatou.
Sandra deixou de tomar os antirretrovirais depois de enfrentar um processo de violência doméstica e psicológica, o que a levou à depressão e ao abandono dos remédios do HIV. Foi a primeira vez que ela desenvolveu a doença. Ela acredita que foi infectada pelo ex-marido, que tinha tuberculose e não tratava adequadamente.
Ao contrário do ex-companheiro, Sandra iniciou imediatamente o tratamento e retomou a rotina com os medicamentos para controle do HIV. Ficou curada da tuberculose em nove meses. Os medicamentos foram adquiridos na rede pública de saúde e, apesar dos fortes efeitos colaterais, Sandra conseguiu manter a disciplina para concluir a terapia.
“A dificuldade que eu enfrentei foi na questão dos medicamentos [da tuberculose] mesmo, porque eram muito fortes e tem que tomar quatro comprimidos todos os dias em jejum. Eu tinha tontura, ficava com mal-estar, sentia dor de estômago. Não pensei em desistir porque adquiri a tuberculose por conta de falha no meu tratamento do HIV. Aí pensei: ‘vou fazer logo o tratamento pra me livrar dela'”, conta.
Diagnóstico e tratamento precoce
O Brasil apresenta tendência de estabilização das taxas de infecção por HIV e tem atualmente cerca de 830 mil pessoas convivendo com o vírus. Em 2016, foram diagnosticados no país cerca de 38 mil novos casos. O volume, no entanto, ainda aponta para uma epidemia, em que uma pessoa é contaminada a cada 15 minutos.
Dados do último boletim epidemiológico de HIV e aids apontam que duas a cada dez pessoas infectadas com o vírus ainda não estão vinculadas a nenhum serviço público de saúde e podem não estar seguindo regularmente o tratamento para controlar a carga viral e fortalecer a imunidade contra doenças consideradas oportunistas, como a tuberculose.
“Atualmente, uma das formas mais seguras e mais assertivas de se reduzir a transmissão de HIV é diagnosticar as pessoas e colocá-las no tratamento o mais precocemente possível. Quando a pessoa está fazendo o tratamento de HIV corretamente, a circulação de vírus no sangue fica indetectável pelos métodos que temos hoje e a gente não consegue encontrar nesses casos possibilidade de transmissão”, explica o infectologista Sacramento.
No Brasil, os últimos dados divulgados pelo Ministério da Saúde apontam melhora no diagnóstico e no acesso ao tratamento de pessoas soropositivas. Em 2016, cerca de 70% das pessoas vivendo com HIV apresentavam adesão suficiente à terapia. Contudo, desde 2013, o Ministério alerta que persiste em 9% a taxa de abandono ou interrupção do tratamento.
“Geralmente são pessoas de baixa renda. O abandono de tratamento tem muito a ver muitas vezes com pessoas que estão com seu benefício negado e não têm condição de se manter. A pessoa não tem condição de comer e se alimentar direito, isso impacta no resultado do tratamento. Pessoas relatam que não conseguem tomar a medicação de barriga vazia”, relata Roberta Gouveia, enfermeira que atua em um centro de referência a pacientes com HIV e tuberculose em Recife (PE).
Roberta também atua na ONG Gestos e defende que o foco do tratamento de pacientes soropositivos não deve estar somente no medicamento. “Deveria haver, por parte do setor saúde, uma preocupação com a prevenção da tuberculose no paciente soropositivo. Eu acho que a coisa está muito focada na dispensação de medicação, em fazer o tratamento de HIV, sem dar a devida importância à tuberculose como coinfecção”, opina a enfermeira.
Redação Saúde no Ar