Pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), protozoários do gênero Leishmania, causadores da leishmaniose, manipulam uma proteína essencial na defesa do organismo para continuar se replicando, o que dificulta o combate à infecção.
Os dados estão disponíveis na revista Nature Communications. Dessa forma, os resultados trazem esperança para o desenvolvimento de novos tratamentos para a doença, que tem cerca de 30 mil novos casos por ano, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), grande parte no Brasil, e para a qual não há medicamentos específicos.
A proteína em questão, a gasdermina-D, produzida por células do sistema imune inato dos humanos (o primeiro a entrar em ação quando um patógeno é detectado), incluindo os macrófagos. Ela promove a indução de um processo inflamatório fundamental para a defesa do organismo contra agentes infecciosos, como bactérias e parasitas.
“A gasdermina-D é importante na ativação do inflamassoma, complexo de proteínas envolvido no combate a infecções. Observamos o inflamassoma ativado em biópsias de pacientes com a forma tegumentar [cutânea e mucocutânea] da leishmaniose”, explica Keyla de Sá, primeira autora do estudo, realizado durante seu doutorado na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Os experimentos mostraram que o parasita realiza por conta própria uma clivagem alternativa da gasdermina-D (a molécula ganha uma forma estrutural diferente), um processo que inativa a proteína e impede que ela exerça suas funções inflamatórias. Em outras infecções, esse processo conhecido como clivagem da gasdermina-D acontece por proteínas do macrófago, causando a morte celular e impedindo que os agentes infeciosos sigam se replicando dentro dele.
“É muito interessante como esses parasitas modulam as funções dos macrófagos, que são células especializadas em matar micróbios. Esse processo permite que a Leishmania se mantenha nos hospedeiros mamíferos por anos, algumas vezes por toda a vida do indivíduo infectado”, destaca Dario Zamboni, coordenador do estudo, professor da USP e pesquisador associado ao Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (CRID), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da Fapesp.
O trabalho teve ainda apoio da fundação por meio de projeto coordenado pelo pesquisador e do Centro Reino Unido-Brasil para o Estudo da Leishmaniose (JCPiL).
Inflamassoma
Os inflamassomas desencadeiam a inflamação e o consequente combate a agentes infecciosos. No trabalho recente, o grupo de Ribeirão Preto analisou o papel do inflamassoma mediado pela proteína NLRP3, um dos mais comuns e bem estudados.
Em outros trabalhos, os pesquisadores haviam mostrado a atuação desse complexo de proteínas nos casos graves de Covid-19, quando ele fica superativado e gera a chamada tempestade de citocinas, que pode levar à morte.
Na ocasião, os pesquisadores testaram com sucesso em animais e células humanas um medicamento que inibe a ação do inflamassoma, podendo futuramente ser administrado em pacientes com Covid-19 grave.
“Agora temos dados que podem permitir, no futuro, testar a mesma droga ou alguma outra nos casos mais severos de leishmaniose tegumentar, quando a inflamação é muito exacerbada. No entanto, é preciso cautela, pois nos casos menos graves da doença o processo inflamatório induzido pelo inflamassoma pode ser importante para o controle da doença”, explica Zamboni.
A leishmaniose, que além da apresentação tegumentar tem ainda a visceral, que ataca os órgãos internos, é uma das 20 doenças tropicais negligenciadas. Esse conjunto de agravos ocorre sobretudo em países tropicais e acomete pessoas pobres.
Em 2021, a OMS lançou um plano para a erradicação de algumas delas e a redução drástica de casos de outras até 2030. As ações incluem a criação de novos medicamentos, uma vez que os atuais, quando existem, são normalmente tóxicos e causam efeitos colaterais, o que leva à descontinuação do tratamento.