Nos últimos treze anos da vida de Irmã Dulce tive uma convivência quase diária, na função de médico e coordenador das atividades pedagógicas da Clínica Médica representando as duas faculdades de Medicina mais antigas de Salvador. Foi um período de grande expansão do complexo hospitalar, o que nos obrigava a acompanhar, com esforço significativo, o seu ritmo de trabalho. Sua criatividade, sua forma incomum de lidar com os problemas, sua vontade firme expressavam-se em atitudes e decisões cujos resultados benéficos para a instituição e, conseqüentemente, para a população carente logo apareciam. Chamavam, porém, a atenção pela falta de coerência com a lógica tradicional, com a racionalidade técnica, com a previdência e o planejamento humanos. Esta foi uma das razões que me fez aproximar da sua figura e manter-me atuante apesar das iniciais objeções técnicas e das diferenças religiosas decorrentes da minha condição de espírita. Com o tempo nossas conversas ampliaram-se do âmbito profissional, para o filosófico e religioso, a experiência psicológica cotidiana, enfim dialogávamos sobre a vida humana. Descobri, com o tempo, que estava ao lado de uma alma tipicamente franciscana, movida por uma fé de alta qualidade, interessada em viver experiências religiosas ou místicas de profundidade, muito perspicaz no entendimento da conjuntura social e nos dramas humanos. A maioria das pessoas a percebiam como o anjo bom dos pobres, a dama da caridade, a provedora de benesses de uma população carente através de uma instituição que não admitia deixar ninguém voltar sem um atendimento médico social digno, mesmo que, para isto, ela tivesse que ampliá-la, segundo nossas palavras, até unir o largo de Roma à colina sagrada do Bonfim. Esta faceta, por demais conhecida, justificaria sua fama e a devoção que se formou em torno do seu nome. Não expressa, porém, em nossa perspectiva, a grandeza do legado espiritual que nos deixou, muito mais importante que os milhares de atendimentos realizados. Afinal de contas como afirmava Jesus, pobres sempre os tereis. Contribuir para resolver o problema da miséria material é atitude nobre, recomendada pela tradição cristã e iniciada pelos apóstolos, em especial Pedro, ao fundar a Casa do Caminho na estrada de Jope. Mas limitar-se a isso é ignorar as causas profundas dos males sociais e agir como um humanista materialista.
Nossa convivência permitiu ver de perto o que reputo o mais completo experimento em termos de fé na espiritualidade, de entrega à ordem divina, de confiança profunda numa lei espiritual que assegura o estritamente necessário em tempo hábil, no mundo material, a quem com ela vive sintonizado. Dos seus lábios ouvi palavras que atestam a sua consonância com este princípio quando ela afirmou, para surpresa geral, que não aceitaria um determinado convênio com a Previdência Social do Governo Federal, pois Santo Antônio havia aparecido em suas orações e lhe dito que assim ela estava trocando a Providência divina pela previdência humana e isto fragilizaria a sua obra de fé. E apesar de múltiplos apelos políticos manteve-se irredutível. Parecia insana tal atitude aos olhares técnicos e mundanos. Uma análise retrospectiva feita a seguir demonstrou que o ganho em dinheiro era muito inferior ao que se perderia em clima espiritual da organização, em apoio voluntário e doações pois a instituição agora seria do governo federal. No fundo verificávamos neste episódio uma aplicação prática do modelo franciscano de agir que exigia de seus discípulos o casamento com a dama pobreza e a inexistência de qualquer segurança material. Acostumados como estamos a pensar no futuro, a acumular para preservar a qualidade de vida no amanhã, mal podemos acreditar que pessoas possuídas de uma fé profunda ajam contrariamente aos nossos princípios, numa espécie de “loucura sagrada” e obtenham resultados melhores que os nossos dizendo frases como “meu convênio é com Deus.
Esta primazia do divino sobre o humano, do espiritual sobre o material, do transcendente sobre o imanente, em perfeita consonância com a frase evangélica que nos recomenda buscar o reino dos céus e sua justiça e que tudo que precisarmos nos será acrescentado, é que acreditamos ser o maior legado espiritual de Irmã Dulce. A relevância da obra material é secundária neste contexto e decorrente desta ação extraordinária. Curar corpos, melhorar o físico, ajudar os pobres são atitudes compatíveis com o humanismo, a responsabilidade social, a cidadania. Estar em contato permanente com Deus, ter nele sua segurança, colocar seu sentido de vida e sua alegria em encontrá-Lo diariamente na fisionomia alquebrada dos idosos, no pedido de socorro de mulheres pobres, nas travessuras de crianças doentes, na angústia de adultos carcomidos pelas doenças, é transcender o humano, é revelar nossa condição original de filhos de Deus. Assim a freira de corpo franzino e doente revelava a supremacia do espírito sobre a matéria, da compaixão sobre o egoísmo, da aceitação sobre o preconceito, da fé sobre a razão. Quem aprendeu estas lições não as esquece jamais.
André Luiz Peixinho
Médico e Professor da EBMSP e da FMB