O aniquilamento da engenharia brasileira

Fernando Alcoforado*

O impacto da crise econômica do Brasil sobre a engenharia nacional tem sido devastador desde 2014. A crise levou 253 empreiteiras à recuperação judicial (concordata) em 2015 cujo número cresceu 25% em relação a 2014. O processo de concordata das empreiteiras resultou da redução das obras de infraestrutura e dos atrasos nos pagamentos das faturas por parte dos governos federal, estadual e municipal. Os cortes no orçamento público contribuíram decisivamente para elevar os pedidos de recuperação judicial das empreiteiras. O crescimento dos pedidos de recuperação judicial é reflexo da crise econômica do País, da falta de crédito e do aumento da taxa de juros. As grandes construtoras pararam de receber e provocaram um efeito cascata entre as empresas menores subcontratadas. O setor da construção civil no Brasil foi afetado, não apenas por atrasos de repasses do governo, mas também pela Operação Lava Jato que levou uma série de empresas envolvidas no esquema de corrupção da Petrobrás aos tribunais, especialmente as grandes construtoras. Endividadas, sem crédito na praça e com contratos cancelados ou suspensos, várias empresas seguiram esse caminho para renegociar as dívidas.

O mercado brasileiro de construção civil vive uma crise sem precedentes. A rentabilidade do setor caiu de 11,2% em 2013 para 2,3% em 2014. Apenas três das 23 empresas de construção classificadas entre as 500 maiores do país conseguiram crescer em 2014. A Odebrecht, a maior delas, teve queda de 32% nas vendas. O setor da construção civil era responsável, em 2014, por cerca de 6,5% do Produto Interno Bruto do País e empregava, diretamente, mais de 3 milhões de pessoas. As dívidas das empreiteiras que passam de 150 bilhões de reais podem, também, levar os principais bancos do país a perdas que, por sua vez, restringirão, ainda mais, a concessão de crédito. Apenas a Odebrecht tinha 98,5 bilhões de reais em dívidas em 2019. Devido à Operação Lava Jato, as empreiteiras encontram restrições legais para entrar em licitações. A Petrobras, principal cliente das empreiteiras investigadas na Lava-Jato, previu cortar cerca de 30% dos investimentos até 2019. Sem caixa e sem novos contratos, o último recurso dessas companhias foi a de entrar com recuperação judicial para renegociar as dívidas.

A Odebrecht, maior empresa brasileira de engenharia, foi destruída pela Operação Lava Jato. A maior empresa brasileira de construção perde sucessivos contratos no exterior, enfrenta tremendas dificuldades de crédito no Brasil e no exterior, enfrenta discriminações políticas e perde as condições mais elementares para estabelecer uma estratégia de superação da crise. O número de trabalhadores, grande parte em postos de trabalho de qualidade e com bons salários reduziu-se drasticamente, enquanto os executivos intermediários, com diferentes áreas de especialização que representavam no passado a alma da criatividade empresarial da empresa, estão totalmente desorientados e sem iniciativa. A Odebrecht aos poucos vai se esvaindo num processo de degradação inexorável. Trata-se do maior desastre da Engenharia nacional de todos os tempos. E um desastre sem igual para a economia brasileira.

A participação de grandes obras no PIB da construção brasileira reduziu de 41,3% para 29,5% em dez anos. A queda reflete o fim de um ciclo de expansão da infraestrutura no País. Os dados fazem parte da Pesquisa Anual da Indústria da Construção (PAIC), liberada pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), que mapeou o setor entre 2007 e 2016. Em 2012, no auge da expansão econômica no século XXI, o investimento em infraestrutura somava R$ 67,04 bilhões, mais que o triplo do verificado em 2016. Nos últimos cinco anos, a economia brasileira desacelerou. A recessão gerada pelo governo Dilma Rousseff e a inação para reativar a economia brasileira do governo Bolsonaro contribuíram para a queda nos investimentos afetando todos os setores, principalmente a indústria da construção. Com menos dinheiro, grandes construtoras sendo desmanteladas pela Operação Lava-Jato e obras paradas, além de outros fatores conjunturais, o mercado da construção civil amargou números negativos pelo quinto ano consecutivo.

Em 2017, a queda no PIB (Produto Interno Bruto) da construção civil foi de 6%. Até o final de 2017, os Engenheiros foram os profissionais de nível superior que mais perderam emprego na iniciativa privada. Com a crise e a saída de tanta mão de obra qualificada do setor, houve uma avalanche de abertura de microempresas para a prestação de serviços de engenharia, o que tornou o ambiente econômico ainda mais competitivo, levando a uma degradação de honorários de empresas já estabelecidas e consolidadas. O balanço atual do setor da construção civil aponta a existência de 14 mil obras paradas e mais de 50 mil engenheiros desempregados.

É importante observar que a Engenharia brasileira é uma peça fundamental no esforço de promover a retomada do crescimento econômico do País haja vista que, por seu intermédio, será possível superar as fragilidades do Brasil em infraestrutura econômica e social. O País terá de investir 2 trilhões de reais adicionais para alcançar investimentos no setor de infraestrutura de 4% do PIB, o mínimo necessário para chegar a um nível razoável de modernização. Segundo o Instituto de Logística e Supply Chain, os investimentos necessários no Brasil em portos (R$ 42,9 bilhões), ferrovias (R$ 130,8 bilhões) e rodovias (R$ 811,7 bilhões) totalizam R$ 985,4 bilhões. Acrescentando este valor aos investimentos necessários a hidrovias e portos fluviais (R$ 10,9 bilhões), aeroportos (R$ 9,3 bilhões), setor elétrico (R$ 293,9 bilhões), petróleo e gás (R$ 75,3 bilhões), saneamento básico (R$ 270 bilhões) e telecomunicações (R$ 19,7 bilhões) totalizam R$ 1.664,5 bilhões.

No Brasil, o setor de educação requer investimentos de R$ 83 bilhões por ano, o de saúde R$ 54 bilhões por ano e o de habitação popular requer R$ 68 bilhões para eliminar o déficit habitacional. Somando o total de investimento requerido em infraestrutura econômica (energia, transportes e comunicações) como o de infraestrutura social (educação, saúde, saneamento básico e habitação) totalizaria R$ 1.869,5 bilhões, isto é, quase R$ 2 trilhões. O programa de infraestrutura econômica e social que venha a ser adotado a curto prazo poderia atingir estes objetivos. A engenharia brasileira seria reerguida, certamente, com a execução deste programa de infraestrutura.

O soerguimento da engenharia brasileira deveria contemplar, também, a adoção de medidas que façam com que a justiça brasileira em sua luta contra a corrupção busque penalizar pessoas, empresários e executivos corruptos e não atacar empresas, como se pessoas jurídicas tivessem a qualidade humana da virtude e do pecado. É preciso evitar que o sistema jurídico nacional destrua empresas brasileiras responsáveis pela geração de centenas de milhares de empregos e pela acumulação de conhecimentos de Engenharia sem paralelo no mundo, e com alta capacidade competitiva internacional. Lamentavelmente, o governo federal não criou um plano de recuperação que ajudasse as empresas de engenharia a sair da crise. Mesmo com a assinatura de acordos de leniência, não há a retomada de obras, e o prejuízo já chega a mais de R$ 50 bilhões.

O que está sendo feito no Brasil com as empresas de engenharia do Brasil não está ocorrendo em outros países que agem contra a corrupção como aconteceu com a Volkswagen na Alemanha em 2018 no caso “Dieselgate” que fraudou dados de poluição de seus carros e foi aplicada multa de 1 bilhão de euros enquanto dirigentes da empresa foram demitidos e presos. Na Volkswagen, nenhum carro deixou de ser produzido e nenhum trabalhador perdeu seu emprego. A Alemanha soube preservar suas riquezas e os empregos. No Brasil o comportamento tem sido o oposto. Prendem-se dirigentes empresariais, suspendem-se as obras, impede-se que empresas participem de outras licitações e trabalhadores são demitidos aos milhares. Destrói-se um patrimônio nacional constituído por empresas formadas ao longo de décadas e detentoras de importante acervo tecnológico e equipes de profissionais experientes. Isto precisa acabar.

Pode-se afirmar que a engenharia brasileira vive a maior crise de sua história. Empresas de reconhecida capacidade técnica, com expressiva contribuição em obras e serviços para nossa engenharia, encontram-se paralisadas diante dos processos jurídicos a que estão respondendo. Assistimos à destruição de nossas maiores empresas de engenharia. Os profissionais, em especial seus engenheiros, foram demitidos aos milhares, as obras foram suspensas, enquanto se esperava para ver até que ponto essas empresas seriam atingidas pelas penalidades da Operação Lava Jato. Foram interrompidos empreendimentos de porte, alguns já em estágio avançado de execução, como as obras do COMPERJ, Angra III, o submarino a propulsão nuclear, a refinaria Abreu e Lima no Nordeste, a transposição do Rio São Francisco e muitos outros. Os prejuízos já chegam a dezenas de bilhões de reais e o desemprego para 13 milhões de trabalhadores.

Enquanto ocorre o desmantelamento da engenharia brasileira pela Operação Lava Jato, o governo Bolsonaro adota a decisão de permitir que empresas estrangeiras disputem licitações e sejam fornecedoras do governo sem a necessidade de ter uma filial brasileira em obras de infraestrutura. Atualmente, a legislação do País exige que uma empresa ou até mesmo uma pessoa física represente juridicamente a companhia estrangeira, para que participe de licitação pública. A decisão do governo Bolsonaro de abrir o Brasil à entrada de empresas estrangeiras contribui para destruir as já debilitadas empresas de engenharia e favorecer o emprego de profissionais da engenharia do exterior em detrimento dos empregos de muitos engenheiros brasileiros. São inegáveis os danos para o Brasil e para a Engenharia brasileira. Esta atitude de Bolsonaro mostra o caráter antinacional de seu governo.

O argumento de que a concorrência é salutar ao Brasil é falacioso porque ela traz prejuízos para o país. Se as obras de infraestrutura são executadas por empresas estrangeiras, os lucros de suas atividades são remetidos para o exterior não ficando no país hospedeiro (Brasil) e grande parte da mão de obra qualificada é contratada no exterior em detrimento dos trabalhadores nacionais. Com esta medida, o governo Bolsonaro colabora com a estratégia das grandes potências capitalistas, sobretudo dos Estados Unidos que fortalecem sua própria engenharia e suas maiores empresas e buscam sabotar as empresas e a engenharia de outros países como ocorre hoje no Brasil. A Engenharia Brasileira foi prejudicada pela Operação Lava Jato e está sendo aniquilada por esta última medida adotada pelo governo Bolsonaro. A Engenharia brasileira está sendo destruída graças ao entreguismo (rendição ao capital internacional) e à ortodoxia econômica neoliberal do atual governo.

Em qualquer país minimamente avançado, a engenharia é protegida e respeitada como sinônimo de prosperidade e fator de desenvolvimento. Não há país que tenha chegado a elevado nível de desenvolvimento sem apoiar soberana e decisivamente sua engenharia. Sem engenharia, a União Soviética não teria enviado o primeiro satélite artificial, o Sputnik, para a órbita terrestre, nem realizado o feito de Yuri Gagarin como primeiro homem a viajar pelo espaço e os Estados Unidos não teriam promovido a expedição à Lua. Sem engenharia, os Estados Unidos não teriam construído suas pontes e arranha-céus e o Brasil não teria construído suas gigantescas hidrelétricas como Itaipu, implantado seu parque industrial e desenvolvido a exploração de petróleo em águas profundas como o Pré Sal. Não existem nações dignas desse nome que consigam responder a questões como para onde avançar, como avançar, quando avançar, sem a ajuda de sua engenharia.

Diante de tudo isso, não podemos fazer mais do que comunicar o aniquilamento da engenharia brasileira, famosa por ter erguido obras pelo mundo inteiro, de rodovias a ferrovias e sistemas de irrigação; passando pela perfuração de galerias e túneis sob as montanhas dos Andes; pelo desenvolvimento de sistemas de resfriamento contínuo de concreto para a construção de Itaipu; ou pela edificação de enormes hidrelétricas e pelo desenvolvimento da tecnologia de exploração do petróleo em águas profundas sem a qual não existiria o Pré Sal. A engenharia brasileira está sendo destruída, com o fechamento de seus escritórios de detalhamento de projetos, suas indústrias de bens de capital, seus estaleiros de montagem de navios e plataformas de petróleo, o encarecimento e corte de suas linhas de crédito, a venda de seus ativos na bacia das almas e o abandono de seus  canteiros de obras.

O momento atual é grave. Para superá-lo é urgente haver uma grande mobilização das entidades representativas dos profissionais da engenharia sob a liderança do Sistema CONFEA/CREA, Clubes e Institutos de Engenharia visando construir uma grande aliança em defesa da engenharia nacional da qual participem os engenheiros, os trabalhadores em geral, o movimento sindical, além de universidades e centros tecnológicos.

* Fernando Alcoforado, 80, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017), Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria) e Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019).

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