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Lições da insurreição popular no Chile

Fernando Alcoforado*

A capital do Chile, Santiago, está sendo marcada por protestos. Ocorreram sete mortes e milhares de feridos desde o início dos protestos. Os manifestantes, de cara coberta com capuzes, envolveram-se em violentos confrontos com polícias na Praça Itália, centro da capital chilena. Os protestos contra o governo começaram na capital, mas se estenderam a outras cidades chilenas. O aumento, entre 800 e 830 pesos (correspondente a 1,04 Euros) no preço dos bilhetes do metrô, que transporta diariamente cerca de 3 milhões de passageiros, desencadeou as violentas manifestações contra o elevado custo de vida e as desigualdades sociais no país.

Como forma de protesto, os estudantes começaram a pular as catracas para entrar nas plataformas do metrô sem pagar a passagem. Os confrontos entre autoridades e manifestantes começaram quando, a polícia tentou bloquear as manifestações. A situação piorou quando a violência tomou as ruas da capital chilena com incêndios em várias estações de metrô e ônibus, saques a supermercados e ataques a centenas de estabelecimentos públicos. O presidente Sebastián Piñera declarou, então, estado de emergência, o que significou o envio de militares para os locais de protesto. Além disso, o governo ordenou toque de recolher. O estado de emergência permanece em vigor na capital e em outras regiões do país, com a mobilização de mais de 10 mil policiais. As autoridades estenderam o toque de recolher na Região Metropolitana de Santiago e nas regiões de Concepción e Valparaíso. O Exército chileno também anunciou toque de recolher em outras cidades, como Coquimbo e La Serena.

Em protesto, os habitantes de Santiago saíram às ruas para expressar descontentamento não apenas pela elevação do preço das passagens do metrô, mas também, pelo aumento do custo de vida e pela política econômica antissocial do governo. O presidente chileno, Piñera, decretou estado de emergência na capital por 15 dias e suspendeu o aumento dos preços dos transportes. No entanto, as manifestações e os confrontos prosseguiram. Os manifestantes alegam a degradação das condições sociais e as desigualdades sociais, uma vez que as áreas da saúde e da educação são quase totalmente controladas pelo setor privado.

A maior central sindical do país iniciou dois dias de greve geral, pedindo o fim de aumentos (de tarifas). A greve ocorre a despeito de um pedido de desculpas do presidente chileno que também anunciou um pacote de medidas econômicas, descritas como “uma agenda social de unidade nacional”. No entanto, nenhuma dessas medidas e anúncios aliviou a fúria dos chilenos que participam dos protestos. O povo insurreto exige renúncia do Presidente do Chile e nova Constituição. Presidente nega renúncia mas admite mudar a Constituição do Chile. Além disso, Piñera cancelou um aumento recente de 9,2% nas contas de eletricidade, prometeu aumentar aposentadorias e pensões em 20% e subsidiar aumentos no salário mínimo, entre outras medidas.

As manifestações populares, porém, continuam em marcha reunindo milhares de pessoas nas ruas de Santiago e outras cidades como Valparaíso e Concepción que apresentaram sérios danos a prédios e espaços públicos, além de bloqueios em portos e estradas. As razões da insurreição popular no Chile resultam do excessivo endividamento da população haja vista que 1 em cada 3 maiores de 18 anos tem um saldo financeiro que não pode custear seu estilo de vida, das altas dos preços nos serviços básicos como metrô, luz, água, medicamentos, da precariedade nos serviços de saúde caracterizada pela falta de hospitais e de especialistas, longas filas de espera e saúde privada que exclui os idosos e é mais caro para as mulheres na idade reprodutiva, do antissocial sistema de pensões caracterizada pela capitalização individual dos trabalhadores com pensão inferior ao salário mínimo de 400 dólares, da precariedade do sistema de educação no qual a lei aumenta as penalidades contra os estudantes e há endividamento de mais de 600 mil estudantes com créditos bancários para cobrir os custos de suas formações (4,5 bilhões de dólares em 2018).

Porém, a insurreição popular no Chile é consequência do legado maléfico deixado pela ditadura sanguinária do general Augusto Pinochet que está expresso na atual Constituição de 1980, ou seja, feita durante o regime de exceção. Pinochet no poder aprovou uma Constituição neoliberal que não coloca o Estado como garantidor de direitos sociais da população, mas como ente subsidiário do que o mercado deixa de atender. O resultado tem sido, por exemplo, o abandono dos serviços de educação e de saúde por parte do Estado que passaram a ser realizados pelo setor privado. O Estado abandonou, também, seus encargos com a Previdência Social com a privatização completa do sistema no qual as pessoas perceberam que, na prática, era impossível deixar de trabalhar até o fim da vida para se sustentar. Na Constituição do Chile de 1980 existe um neoliberalismo flagrante do regime jurídico e econômico do país se constituindo em heranças malditas de Pinochet no sistema institucional do país.

Sobre a ditadura de Pinochet, é importante relembrar que no dia 11 de setembro de 1973, as Forças Armadas do Chile, sob a liderança do comandante do Exército, general Augusto Pinochet, deflagraram o início de um dos mais repressores e sangrentos períodos da história da América Latina no século XX. Durante cerca de três horas, forças golpistas e legalistas, que se mantiveram ao lado do presidente eleito Salvador Allende, se enfrentaram em combates no Palácio de La Moneda, a sede da presidência do Chile, em Santiago. Depois de bombardeado por aviões da força aérea e invadido por militares, o presidente Salvador Allende foi encontrado morto entre os escombros do palácio. Uma junta militar sob o comando de Pinochet assumiu o poder e decretou “estado de guerra”, dando início a um regime de terror que duraria 17 anos, com mais de 3.200 mortos e 38 mil presos e torturados.

Além de ter imposto a ditadura militar, Pinochet deixou como legado o modelo econômico neoliberal do qual resultou o Chile como um país extremamente desigual. Segundo a última edição do relatório Panorama Social da América Latina, elaborado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a parcela de 1% mais rica da população chilena manteve 26,5% da riqueza do país em 2017, enquanto 50% das famílias de baixa renda representavam apenas 2,1% da riqueza líquida. Segundo o Instituto Nacional de Estatística do Chile, metade dos trabalhadores do país recebe um salário igual ou inferior a 400 mil pesos (R$ 2.280) ao mês. Com esse salário, os manifestantes alegam que um aumento na passagem do metrô é inconcebível. Ainda mais se considerar que o transporte público no Chile é um dos mais caros da mundo. Um estudo recente da Universidade Diego Portales aponta que, de um total de 56 países ao redor do mundo, o transporte no Chile é o nono mais caro. Assim, existem famílias de baixa renda que podem gastar quase 30% de seu salário no transporte público, enquanto, no nível socioeconômico mais rico, o percentual de gastos nesse setor pode ser inferior a 2%.

Além das desigualdades sociais crescentes no Chile, há anos, a classe política chilena vem prometendo melhorias na qualidade de vida para os cidadãos. Reformas educacionais, constitucionais, tributárias e de saúde foram anunciadas, mas muitas delas falharam em atender às expectativas da sociedade. A agitação social resultou nessa série de manifestações pelas expectativas não atendidas pelos governos Michelle Bachelet (de 2006 a 2010 e depois de 2014 a 2018), de centro-esquerda, e Sebastián Piñera, de centro-direita — que também liderou o país em um período anterior, entre 2010 e 2014. Cabe destacar que os recentes protestos foram liderados principalmente por estudantes. A primeira manifestação ocorreu em 7 de outubro, liderada por estudantes de escolas emblemáticas, principalmente do Instituto Nacional. Este estabelecimento, fundado em 1813, foi o ponto central de organização de protestos. As reclamações dos estudantes têm a ver com a “falta de recursos” para a educação chilena e precariedade nas salas de aula. Os excessos que ocorreram nos últimos dias no Chile são resultado, em parte, do surgimento de uma nova geração de estudantes que se manifesta com crescente intensidade.

Países como o Brasil que estão adotando o modelo econômico neoliberal desde 1990 poderão enfrentar a mesma insurreição que ocorre no Chile em consequência das crescentes desigualdades sociais. Os governantes desses países poderão se defrontar com a insurreição popular que resulta, fundamentalmente, do divórcio entre o Estado neoliberal e a Sociedade Civil espoliada economicamente e prejudicada em direitos sociais.

* Fernando Alcoforado, 79, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017), Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria) e Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019).

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