Marcelo Cordeiro
Há muito tempo os documentos por si só não são mais fontes verdadeiras, rígidas ou inalteradas. Na verdade, para o historiador, “os documentos são vestígios”, como afirmou Marc Block em seu livro Apologia da História, publicado por seu amigo Lucien Frebvre, em 1949, alguns poucos anos depois, precisamente em 16 de junho de 1944, data em que os nazistas ceifaram a vida desse extraordinário medievalista.
Trago à tona essa dolorosa lembrança, a fim de salientar que os diferentes e notáveis documentos, os quais repousam sob a meticulosa guarda do nosso INSTITUTO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO DA BAHIA – IGHB, são mais que o testemunho de uma história esgotada nos acontecimentos, a chamada “histoire événementielle”, como chamam os franceses, calcada sobre fatos, grandes homens e grandes heróis. Marc Bloch e seus companheiros da École des Annales, sepultaram de uma vez por todas essa concepção anacrônica da História.
Para esses inovadores historiadores o passado histórico era uma “estrutura em progresso”, susceptível de novas abordagens e interpretações, conforme as insinuações do tempo presente e os vestígios perceptíveis com suas novas leituras.
Se a História fosse a constatação de fatos e a identificação dos heróis que os vivenciaram, era suficiente uma e definitiva revelação e o ofício do historiador não passava de um contador de casos já conhecidos. Todo passado tem uma nova leitura e uma nova revelação. A documentação histórica é um ser vivo, pulsante e de conteúdo sempre novo!
Sabemos que o IGHB contém um acervo extraordinário da nossa História, a fim de que seja continuamente examinado e relido. Documentos de toda espécie, escritos, quadros, mobiliário, depoimentos, jornais de todas as épocas e muito mais, são documentos plenos de novidades e não apenas de notícias pretéritas, mas notícias pretéritas carregadas do que só se revelariam por inteiro no presente.
Essa visão do passado, a de que eles não são pedras sem voz, cai por terra quando os concebemos como uma informação que se modifica e se altera.
É com esse instrumental teórico tão apreciado pelos historiadores modernos, que não cansam de reproduzir em seus estudos, tal como o fazem Pierre Chounu, Jaques Le Goff, Frederic Morro, Fernand Braudel, Emmanuel Le Roy Laduriet, Jacques Revel, Pierre Nora, Marc Ferro, Kátia Mattoso e muitos outros, que devemos examinar o rumoroso caso da eliminação dos recursos orçamentários estaduais, que a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, deixou de destinar a esta centenária e fundamental instituição para a cultura baiana e brasileira.
É de se supor que a SECULTBA inclua entre seus funcionários detentores dos rudimentos da teoria histórica, com o qual possam avaliar o significado do precioso acervo documental, sua valia e aplicação em situações históricas no presente e no passado, levando em conta os ensinamentos de Marc Bloch e seus seguidores, que tanto enriqueceu o legado científico dessa importante ciência humana.
A alegação de que a política do IGHB não era condizente com a política do Governo do Estado, deixa muito claro, que o governo estadual deve apressar-se em esclarecer, através de uma voz mais abalizada, que a sua política é de conservar e preservar toda documentação que se revele imprescindível à compreensão de nossa História, sob pena de virar as costas à leitura constante de nossa realidade histórica.
Não foi por acaso que o constituinte de nossa Carta Magna, promulgada em 05 de outubro de 1988, cuidou de assinalar no seu Art. 11, XIV, como dever do Estado proteger os monumentos e impedir a descaracterização de documentos, obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural.
Não seria justo, antes que outros elementos sejam aduzidos, que a medida inesperada tenha sido adotada pela SECULTBA por razões, sob todos os aspectos repugnantes, de natureza política, que ferem as liberdades democráticas, a autonomia das instituições e os inestimáveis prejuízos históricos, já arguidos.
Marcelo Cordeiro, professor, ex-deputado constituinte e 1 Secretário da Constituinte