O assunto é polêmico e a frieza dos números não podem retirar o caráter humano da discussão. Convidamos você, a conhecer a problemática que envolve pacientes, médicos, instituições, governo e poder judiciário neste caldeirão de dificuldades e desafios.
Diante de uma situação em que pacientes precisaram de um serviço de saúde que foi negado ou que os setores público ou privado disseram não estarem habilitados a conceder, cerca de 1.600 baianos, somente no primeiro semestre deste ano, de acordo com a Defensoria Pública do Estado da Bahia, resolveram recorrer à justiça para garantir um direito que é constitucional. Pois você pode até nunca ter lido, mas está lá no artigo 196 da Constituição Federal de 1988: saúde é “um direito de todos e um dever do Estado”.
Bem, até aí tudo parece estar dentro da normalidade e aparentemente não há como questionar que o governo seja obrigado a oferecer um serviço tão importante como o de saúde. Mas a polêmica surge quando os números são utilizados para justificar alguns argumentos suscitados na discussão. Segundo a Secretaria Estadual de Saúde, em toda a Bahia são gastos, em média, R$ 88 milhões por ano, por causa da judicialização. O dinheiro daria para manter funcionando um hospital como o Roberto Santos por quase quatro meses.
Em âmbito nacional, os gastos do Ministério da Saúde com judicialização passaram de R$ 367 milhões, em 2012, para R$ 844 milhões, em 2014. O crescimento é de 129% no período. Os números são do Conselho Nacional de Justiça e foram divulgados este ano. Aí surge a polêmica: qual deve ser o limite da judicialização na área da saúde? Já que, no caso, o dinheiro que deveria ser empregado na saúde pública coletiva, passa a ser utilizado para atender à demanda de um grupo restrito de pessoas.
Direitos individuais e coletivos
Para a juíza Nícia Olga de Souza, titular da 10ª vara do Sistema de Juizados Especiais, a judicialização “demonstra uma carência seja do município, estado ou do governo federal no setor da saúde”. A visão também é compartilhada pelo promotor de justiça Carlos Matel Guanaes. Para ele “quando há uma falha no sistema (de saúde), é que a pessoa recorre ao poder judiciário. Seja ela uma falha de comunicação, de cobertura, por má fé ou que demostre a ausência da presença do Estado”. Guanaes afirma que “o cidadão, na maioria das vezes, só recorre ao judiciário quando ele já não tem mais outro recurso”.
Já para o médico Ailton Melo as determinações judiciais interferem no trabalho do profissional de saúde. “A relação médico-paciente está cada vez mais sendo quebrada. Isso também ocorre porque nós médicos estamos atendendo a um número cada vez maior de pacientes e isso faz com que conversemos cada vez menos com eles. Muitas vezes o paciente, até por conta de todas as informações que ele tem acesso, define o tratamento ou o medicamento que ele gostaria de ter e vai buscar respaldo em uma instância maior para conseguir isso”, destaca.
Melo defende ainda que “o direito individual não pode se sobrepor ao direito de todos”. Mas a juíza Nícia Olga de Souza rebate a afirmação. “O direito coletivo é composto de individualidades. Nestas individualidades nós temos os seres humanos. A coletividade é composta de seres humanos. O Estado já deveria estar preparado para as ações públicas previstas em uma constituição que data de 1988”, diz.
O médico Marcos Luna que é preceptor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia alega que a judicialização compromete ainda mais o orçamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e impede a viabilidade de um projeto como o sistema de transplante. “Algumas especialidades consomem o orçamento do SUS através de demandas de realização de procedimentos como próteses ortopédicas ou cateteres cardiovasculares e tratamentos caros, não raros experimentais. Tudo isso conseguido às custas de liminares judiciais. O que é lamentável considerando que o SUS pertence a toda sociedade brasileira, não apenas as classes superiores”, destaca.
A importância dos laudos médicos
O presidente da Federação Baiana de Serviços de Saúde, Marcelo Brito, afirma que em muitos casos as determinações da justiça prejudicam clínicas e hospitais: “No momento em que a clínica ou o laboratório é obrigado a fazer o atendimento, muitas vezes, ele termina não recebendo por isso e esta situação acaba onerando toda a cadeia da saúde. A solução para isso seria algumas medidas que o Tribunal de Justiça já tem adotado, que é constituir um grupo técnico de saúde que possa auxiliar os juízes a tomar as melhores decisões”.
Mas é aí que um outro entrave se estabelece. Segundo a titular da 10ª vara do Sistema de Juizados Especiais, apesar do Tribunal de Justiça da Bahia ter uma câmara médica que auxilia a decisão dos magistrados, os juízes não podem “desautorizar os laudos que estão instruindo o processo”, por isso apesar de estarem na ponta da decisão, eles não são os únicos responsáveis por ela. “A responsabilidade integral (sobre a judicialização) não pode ser colocada nos ombros do juiz, porque na realidade nós não temos responsabilidade técnica para discutir o laudo médico”, enfatiza.
Em alguns casos, com menor frequência, pacientes recorrem ao judiciário até no caso de cirurgias eletivas e para ter acesso a um medicamento de determinadas marcas. Para juíza Nícia Olga de Souza Dantas o assunto deve ser cada vez mais debatido na sociedade. Ela afirma que as possíveis soluções para os impasses gerados por ele, passam sempre pelo diálogo entre médicos, pacientes, prestadores de serviços públicos e privados de saúde e a justiça.
Instituições representativas da área médica preocupadas com essa temática vem realizando encontro e congressos para aprofundar a discussão. O assunto também foi tema do debate que aconteceu hoje (18) no Programa Saúde no Ar, veiculado de segunda à sexta, das 8h às 9h, na Rádio Excelsior da Bahia e Rádio Web Saúde no ar .