Coluna Educação, História e Política: O Desertor

Entre duas e três horas da madrugada do dia 18 de julho de 1924, as tropas do Exército aquarteladas em Aracaju perderam um dos seus soldados. Ele estava acampado nas trincheiras da Praia que ganharia a denominação de 13 de Julho. Era um dos comandados do capitão Eurípedes Esteves de Lima e dos tenentes Augusto Maynard Gomes, João Soriano de Mello e Manoel Messias de Mendonça.

As trincheiras eram consequência da quartelada do capitão e dos tenentes contra o presidente do Estado de Sergipe, Maurício Graccho Cardoso, que por eles fora levado preso ao quartel do 28º Batalhão de Caçadores, na praça General Valadão. Na praia, em frente a foz do rio Sergipe, as tropas aguardavam a chegada do contratorpedeiro Alagoas, enviado pelo presidente Arthur Bernardes com forças legalistas para prender os revoltosos e libertar o presidente Graccho Cardoso.

Aos 19 anos de idade, o musculoso negro Faustino era esbelto, de porte atlético, nascido e criado na vila do Espírito Santo, hoje a cidade de Indiaroba, às margens do caudaloso rio Real, delimitador ao sul da fronteira entre os Estados de Sergipe e da Bahia. Sua família era admiradora de Maurício Graccho Cardoso e do seu pai, o professor estanciano Brício Cardoso. Por isto, Antonio Faustino estava ali revoltado.

Exímio nadador, acostumado a fazer a travessia do rio Real, passando frequentemente com braçadas seguras da margem sergipana para o lado baiano e vice-versa, não teve dificuldade para aproveitar o momento no qual a maior parte das tropas dormia e fugiu, sem que os sentinelas percebesse. Andou até a margem do rio, mergulhou silenciosamente e quando emergiu e deu as primeiras braçadas já se encontrava em segurança, sem que houvesse a possibilidade de ser apanhado pelos pares.

Alcançou com rapidez o Bico do Pato ou Colodiano, hoje espaço conhecido como Coroa do Meio. Se embrenhou pelos manguezais e pontas de praia e antes dos primeiros raios de sol estava vencendo as areias da praia de Atalaia, numa caminhada incansável que o levou, no início da noite, até a foz do rio Vaza Barris, região agora bem habitada e conhecida como Mosqueiro, mas, à época, absolutamente inóspita, onde, exausto, procurou um abrigo natural e dormiu.

Andar na areia da praia durante todo o dia era pesado e o sol causticante fazia com que tudo ficasse muito cansativo. Mas, Faustino era desertor das tropas do Exército e não podia se expor atravessando regiões povoadas, ainda mais usando o uniforme militar. Viajava sem bagagem e não tinha qualquer outra roupa. Tudo ficara no quartel, em Aracaju.

Atravessar a nado a foz do rio Vaza Barris, foi muito difícil, pela distância entre uma e outra margem, mas o desertor soube aguardar e iniciou a travessia com os primeiros movimentos da maré enchente, aproveitando as correntes em seus favor, para ser empurrado até a as praias de Itaporanga D’Ajuda, município que se limita com o território que à época era São Cristóvão e agora é Aracaju.

Outro dia de caminhada, atravessando pântanos e areais das praias da Caueira e Saco, onde dormiu à noite, ao relento. Na manhã do seu terceiro dia, uma grande dor de cabeça. A dificuldade para fazer a travessia extensa da foz de três rios: Real e Piauí/Piauitinga. Antônio Faustino reconheceu a canoa de Mané Rabeca, habilidoso instrumentistas das cordas e experiente pescador de tarrafa, amigo de Zé Viana, meu bisavô e seu pai. Com ele pegou carona até Espírito Santo, onde chegou por volta das três da tarde do terceiro dia daquela jornada.

Coincidentemente, na mesma hora, Zé Viana estava no cais amarrando a sua canoa, recém chegado de uma boa pescaria na qual a captura de robalos, vermelhas e arraias foi abundante. Surpreso, abraçou o filho. Ambos choraram e foram para casa. A mãe, Maria Viana, não escondia sua tristeza desde que o filho se alistara no Exército. Ficou feliz com a volta dele a Espírito Santo, mesmo alertada quanto aos graves problemas que envolviam a condição de desertor.

Faustino era o filho caçula. O único varão de uma prole de quatro descendentes do casal. Ambília, a mais nova das mulheres, ainda adolescente migrara, em 1923, para Itabuna, a capital baiana do cacau em função de haver casado com um pequeno produtor do valioso fruto. Laura, a irmã do meio, também festejou a presença de Antônio. A minha avó paterna, Maria Viana, o mesmo nome da mãe dela, era a mais velha da prole e a mais ligada a Faustino.

Rapidamente, Antônio decidiu. Permanecer em Espírito Santo significava ser preso com facilidade. Na manhã seguinte partiria um saveiro com destino ao porto de Ilhéus. Embarcaria para encontrar a irmã Amabília, em Itabuna, e passar uma temporada trabalhando na propriedade rural do cunhado Alfredinho. O outro cunhado, Epifânio, meu avô paterno, noivo de Maria Viana, era tripulante da embarcação e facilmente conseguiu a vaga para que o fugitivo viajasse.

Antônio Faustino conversou com Maria, a irmã mais velha. Iria até a casa de Raimunda, com quem deixara seu coração ao se alistar no Exército como voluntário. O amor entre ambos era sólido e tinham planos de casar. Faustino tinha um grave defeito: a pobreza da sua família impedia que os pais da moça o aceitassem como genro. Coube a Maria Viana lhe dar a triste notícia de que o seu amor fora mandado pelos pais para o Rio de Janeiro, prometida em casamento a um amigo mais abastado.

Sentado no convés do saveiro, carregando seu matolão, partiu do porto de Espírito Santo, por volta das quatro da madrugada, triste e desesperançado ao encontro da irmã Amabília em Itabuna. A vida perdera o sentido.

 

 

Por: Jorge Carvalho do Nascimento  – Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

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