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Causas da revolta popular nos Estados Unidos

 

Fernando Alcoforado*

Este artigo tem por objetivo analisar as causas do levante popular que ocorre no momento nos Estados Unidos que resultou do assassinato de George Floyd, negro americano algemado por um policial branco em Minneapolis, que se ajoelhou sobre seu pescoço durante quase nove minutos até que ele fosse morto. Este evento serviu de ponto de partida para um grito de guerra em mais de 100 cidades americanas contra, não apenas o racismo, mas também, contra os males sociais sofridos pela grande maioria da população norte-americana, especialmente pela população negra, que foram agravados pela propagação do novo Coronavirus que contribuiu para levar a economia norte-americana à recessão e à elevação vertiginosa do desemprego nos Estados Unidos.

Sobre o racismo, é importante observar que os Estados Unidos foram formados, inicialmente, por colonos ingleses que deram origem às chamadas Treze Colônias na costa Leste do país. As colônias do Sul tiveram um desenvolvimento diferente daquelas do Norte. No Norte, houve o modelo da pequena propriedade privada, do trabalho livre e assalariado e do desenvolvimento da indústria e, no Sul, prevaleceu o modelo da grande propriedade de terras e da monocultura (que caracteriza a chamada plantation). Nesse modelo, ao contrário do que vigorou no Norte, assentou-se o uso do trabalho escravo, mais precisamente de escravos negros oriundos do continente africano.

Durante o período em que predominou a escravidão no Sul dos Estados Unidos, os negros escravos eram considerados mercadoria de seus donos e não indivíduos portadores de direitos. Essa situação só teve fim com o término do modelo econômico escravocrata no Sul que resultou da Guerra Civil que transcorreu entre os anos de 1861 e 1865. Na Guerra Civil Americana, entraram em conflito os estados do Norte, comandados pelo então presidente Abraham Lincoln, e os autoproclamados Estados Confederados do Sul, que pretendiam fundar uma confederação separatista. A guerra terminou com a vitória do Norte, que resultou na imediata abolição da escravatura.

Após a guerra civil, houve o processo de reconstrução do país com a reincorporação dos estados do Sul ao restante do país. Nesse período, nos anos finais da década de 1860, era inaceitável para muitos cidadãos brancos sulistas que os negros, recém-libertos, tivessem os mesmos direitos e ocupassem os mesmos espaços que eles. No mesmo ano em que terminou a guerra civil (1865) foi formada a seita Ku Klux KLan. A polícia da União sufocou os primeiros focos de ação violenta da Ku Klux Klan contra os negros. Todavia, no início do século XX, a seita voltaria com muita força com milhares de adeptos. Os entraves sociais provocados pelas leis de segregação racial nos Estados Unidos e o virulento racismo delas decorrente só começariam, de fato, a ser ao menos parcialmente resolvidos com os movimentos de luta pelos direitos civis dos negros. Um dos líderes desses movimentos tornou-se símbolo dessa luta: Martin Luther King Jr. que foi assassinado. Nem mesmo a presença de um negro na presidência da República como Barack Obama contribuiu para arrefecer o racismo nos Estados Unidos.

Além do racismo que continua presente nos Estados Unidos, existe uma acentuada piora em diversos indicadores sociais país que contribuem para o levante popular. O último PNUD divulgado pelas Nações Unidas, comprova a piora de diversos indicadores sociais do país. Os Estados Unidos veem perdendo a capacidade de gerar bem estar à sua população. Dados ligados à educação, saúde, desigualdade e estratificação social, também já se equiparam a diversos países periféricos e semiperiféricos do capitalismo.

Os Estados Unidos são considerados o país mais rico do mundo e dono da maior economia do planeta. No entanto, este fato não se converte em bem-estar para seus habitantes devido à excessiva concentração de riqueza e renda e a existência de uma sociedade profundamente calcada no consumo com ideias completamente distorcidas de bem-estar social. os Estados Unidos registram indicadores de desenvolvimento social significativamente abaixo de outros países ricos. Os Estados Unidos sempre tiveram uma rede de segurança social menos generosa. Os programas sociais não contemplam benefícios universais, como é o caso em muitos outros países industrializados, além de haver enormes disparidades de riqueza.

Na realidade, há vários indicadores de desenvolvimento social em que os Estados Unidos aparecem atrás na comparação com outros países ricos e muitas vezes, lado a lado com países periféricos e semiperiféricos do capitalismo. Alguns indicadores sociais colocam em xeque os níveis de desenvolvimento e bem-estar nos Estados Unidos. O relatório mais recente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) indica que a expectativa de vida dos americanos é de 79,2 anos. Esse dado coloca o país como o 40º do mundo, atrás de um conjunto de países desenvolvidos, mas também de alguns países latino-americanos, como Chile, Costa Rica e Cuba. Nos Estados Unidos, enquanto a expectativa de vida de um homem branco com educação universitária é de 80 anos, a de um homem afro-americano com baixa escolaridade é de 66 anos, segundo pesquisas do Centro Nacional sobre a Pobreza nos Estados Unidos (NPC, na sigla em inglês).

Os números sobre mortalidade infantil – o número de crianças que morrem por mil nascidos vivos – é outro indicador clássico do bem-estar social. De acordo com o relatório mais recente do Pnud, que utiliza dados de 2015, esse indicador é de 5,6 nos Estados Unidos. Isso o coloca no 44º lugar do mundo, novamente superado pelos países ricos como um todo, bem como por Cuba, Bósnia e Croácia. Nesse caso, as diferenças sociais dentro dos Estados Unidos também são evidentes. Em 2011, a taxa de mortalidade infantil entre os afro-americanos era semelhante à de Togo e da Ilha de Granada. O bem-estar das crianças americanas também é colocado em xeque quando são considerados indicadores de pobreza infantil. De acordo com um estudo do Unicef de 2012, que comparou a situação de crianças em 35 países de economia avançada, os Estados Unidos apareceram no penúltimo lugar – antes apenas da Romênia.

Desde o início deste século, os Estados Unidos registraram um aumento nos índices de mortalidade materna, cuja taxa passou de 17,5 mortes por mil nascimentos em 2000 para 26,5 em 2015, de acordo com um estudo publicado na revista científica The Lancet em janeiro deste ano. É um fenômeno que vai na contramão das tendências no restante do mundo industrializado, onde houve um declínio no mesmo período. Esse foi o caso, por exemplo, do Japão (de 8,8 para 6,4), Dinamarca (de 5,8 para 4,2), Canadá (de 7,7 para 7,3) e França (de 11,7 para 7,8). Nesse caso, há também uma clara desigualdade nos Estados Unidos: a taxa de mortalidade materna entre mulheres brancas é de 13, mas entre as afro-americanas é de 44.

A segurança pessoal, a possibilidade de proteger a própria vida, é considerada outro elemento básico do bem-estar social. De acordo com o relatório mais recente do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNDOC), os Estados Unidos registram uma taxa de homicídio de 4,88 óbitos por 100 mil pessoas, o que o coloca em 59º lugar no mundo. Esse número contrasta com o de países europeus, como Áustria (0,51) ou Holanda (0,61), mas também com o Canadá (1,68) e até a Albânia (2,28), Bangladesh (2,51) e Chile (3,59, de acordo com dados de 2014, os mais recentes).

Além de representar um risco para a saúde das mulheres jovens, a gravidez na adolescência é frequentemente associada à vulnerabilidade. Segundo dados do Banco Mundial para 2015, os Estados Unidos registram uma taxa de 21 nascimentos desse tipo para cada mil mulheres entre 15 e 19 anos de idade – colocando o país no 68º lugar do mundo, mesmo nível de Djibouti e Aruba, e bem acima da média de países com altos níveis de renda. Outros países ricos têm números bem mais baixos, como Japão (4), Alemanha (6) e França (9).

Os Estados Unidos são sede de dezenas das melhores universidades do mundo. Mas isso não significa que a formação média dos americanos esteja à altura desses centros de excelência. De acordo com um estudo realizado no âmbito do Programa Internacional para Avaliação de Competências (PIAAC, na sigla em inglês), entre os países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o país teve uma performance considerada medíocre. A pesquisa mediu três níveis educacionais diferentes em termos de capacidade de leitura e habilidade numérica: pessoas que não completaram o ensino médio, indivíduos com ensino médio completo e outros com pelo menos dois anos de ensino universitário cursado. Participaram da análise pouco mais de 20 países: Austrália, Áustria, Canadá, República Checa, Dinamarca, Estônia, Finlândia, França, Alemanha, Irlanda, Itália, Japão, Países Baixos, Noruega, Polônia, Coréia do Sul, Eslováquia, Espanha, Suécia, Estados Unidos, Bélgica e Reino Unido.

No teste sobre a capacidade de leitura, entre aqueles que não haviam terminado o ensino médio, os americanos ficaram entre os cinco países com os piores resultados; entre aqueles que completaram esse nível de estudos, o país ficou abaixo da média de todos. No caso de pessoas que tinham começado a cursar a universidade, os americanos ficaram acima de oito países, empataram com outros seis – mas foram ultrapassados por sete nações. Além disso, os Estados Unidos registraram a maior diferença entre os resultados obtidos por aqueles que não terminaram o Ensino Médio e aqueles que têm pelo menos dois anos de ensino universitário. Na avaliação das habilidades numéricas, os americanos ficaram consistentemente abaixo da média da OCDE nos três níveis educacionais estudados. Além disso, o país ficou na lanterna em dois níveis: entre os que não terminaram o ensino médio e aqueles que concluíram esta etapa. Para aqueles que completaram pelo menos dois anos de ensino superior, os Estados Unidos superaram a Espanha e a Itália e se igualaram a outros cinco países – ficando atrás de 15 outras nações.

Apenas a luta contra o racismo não é suficiente para explicar este levante que ocorre no momento nos Estados Unidos. O levante popular atual se explica, também, pelas crescentes desigualdades sociais que se registram nos Estados Unidos que foram agravadas pela propagação do novo Coronavirus que levou a economia do país à recessão e ao desemprego de 40 milhões de trabalhadores. Ao invés de buscar a construção da coesão e da paz social apresentando soluções para a questão do racismo e das desigualdades sociais para colocar um fim no levante popular, Donald Trump anunciou nesta segunda-feira (1º de junho) que vai enviar militares norte-americanos às ruas do país caso os governadores e prefeitos não ponham fim à violência nos protestos que ocorrem pelo país. Além disso, Trump disse que faria o possível para garantir cumprimento ao toque de recolher. Diversas cidades dos Estados Unidos adotaram a medida. Porém, em vários locais, os protestos continuaram mesmo com esta restrição. Governadores em diversos estados norte-americanos pediram reforço de integrantes da Guarda Nacional que atuam já em cada um desses locais. O primeiro a pedir ajuda foi Minnesota, justamente o estado onde George Floyd foi assassinado.

Enquanto Trump discursava hoje (1º de junho), os arredores da Casa Branca registravam confrontos entre forças de segurança e manifestantes, após protesto que começou pacífico. De acordo com a imprensa norte-americana, o presidente enviou de 600 a 800 militares da Guarda Nacional a Washington. Trump está aproveitando para galvanizar sua base conservadora de eleitores, apontando como vilões pelos distúrbios violentos os antifas, grupo antifascista, e grupos radicais de esquerda, que têm como alvos o confronto com tudo que consideram de extrema direita. Com discurso anticapitalista, geralmente vestidos de preto, os antifas utilizam táticas semelhantes às empregadas por anarquistas, sem cobiçar um projeto político ou participação no Congresso. O movimento surgiu na Alemanha na década de 1930, como um grupo de extrema esquerda para combater o nazismo. Nos Estados Unidos, ressurgiu na presidência de Trump para fazer frente a grupos conservadores e à extrema-direita (alt-right), que ajudaram a elegê-lo.

Um fato é evidente, a burguesia norte-americana, a mais rica e poderosa do mundo, está colocando todo o aparato de repressão estatal para sufocar o levante popular que é uma expressão legítima do ódio contra a miséria, a pobreza e a opressão política e racial no país. Diversas medidas de exceção estão sendo tomadas por Trump, como a implementação de toque de recolher, repressão a repórteres e jornalistas e prisões massivas de cidadãos. A ação do governo Donald Trump deixa evidente que a democracia nos Estados Unidos se esfacelou com os atos repressivos em execução e os que deverão ser adotados pelo governo Trump. A mobilização popular nas ruas está colocando em xeque o regime político e social nos Estados Unidos.

* Fernando Alcoforado, 80, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017), Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria) e Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019).

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