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A gênese da riqueza e da pobreza na era contemporânea

Este artigo tem por objetivo demonstrar que que riqueza e pobreza não podem ser tratados de forma isolada, uma vez que são as faces de uma mesma moeda formando um conjunto irredutível. A análise da riqueza não pode ser dissociada da pobreza, pois a concentração da riqueza gera a exploração que se constitui elemento fundante da pobreza. Isto significa dizer que se trata de uma falácia capitalista o dogma de que a promoção da concentração da riqueza e da renda seria o meio para o desenvolvimento econômico e a superação da pobreza. Há um pensamento generalizado de que as causas da miséria e da pobreza estariam vinculadas a desajustes familiares, ao despreparo educacional do indivíduo para o mundo do trabalho e à falta de capacidade do indivíduo para empreender. Como será apresentado nos parágrafos a seguir, as causas da pobreza estão relacionadas com as desigualdades sociais resultantes da concentração da riqueza no capitalismo.

Mas por que associar a pobreza à sociedade capitalista, se sempre houve pobreza e desigualdade ao longo da história da humanidade desde que a sociedade foi dividida em classes sociais nos primórdios da humanidade? Será que este fenômeno, sempre presente nas diversas organizações sociais ao longo da história da humanidade, apresenta alguma característica central no modo de produção capitalista, diferente de outros sistemas sociais? Será que o capitalismo gera uma pobreza que se funda em bases diferentes de outras sociedades? A resposta é a de que, na sociedade capitalista, a pobreza é o resultado da acumulação privada de capital, mediante a exploração (da mais-valia, isto é, a parte do trabalho não pago pelo empregador ao trabalhador), da relação entre capital e trabalho, da relação entre os donos dos meios de produção e os donos da força de trabalho, da relação entre exploradores e explorados, da relação entre os produtores diretos de riqueza e os usurpadores do trabalho alheio.

Na sociedade capitalista não é o precário desenvolvimento que gera desigualdade social e pobreza, como muitos pensam, mas o próprio desenvolvimento. No capitalismo, quanto maior é a acumulação do capital, maior é a riqueza e maior, também, é a pobreza. Quanto mais riqueza produz o trabalhador, maior é a exploração, mais riqueza é expropriada (do trabalhador) e apropriada (pelo capitalista). Assim, não é a escassez que gera a pobreza, mas a abundância (com a concentração da riqueza em poucas mãos) que gera desigualdade e pauperização absoluta e relativa. Thomas Piketty, economista francês, escreveu um livro chamado Capital in the Twenty-First Century (Capital no século XXI) publicado pela The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 2014, no qual defende a taxação progressiva e a tributação da riqueza global como único caminho para deter a tendência de uma desigualdade crescente de riqueza e renda no sistema capitalista. Para diminuir as desigualdades sociais, Thomas Piketty propõe, portanto, uma medida que é considerada utópica que é a taxação de grandes fortunas.

O Capital no Século XXI sugere, entre outras coisas, o combate à desigualdade econômica e à concentração da riqueza nas mãos de poucos. Com cerca de 500 páginas, O Capital no Século XXI é dividido em quatro partes nas quais trata da questão da renda, produção, capital e suas transformações ao longo da história, principalmente a partir da Revolução Industrial no século XVIII e faz uma verdadeira genealogia da questão de renda, sobretudo, com um extensivo levantamento sobre as políticas de salário com focos na França, Reino Unido e Estados Unidos os quais foram muito úteis para uma leitura a respeito da história do capitalismo global e suas problemáticas. Thomas Piketty analisa, também, a desigualdade, a concentração de renda, o rentista enquanto inimigo da democracia, a desigualdade mundial da riqueza no século XXI, a questão das famílias detentoras da riqueza global e, por fim, a taxação e regulação da riqueza global.

Piketty coloca em xeque a visão, amplamente aceita, de que o capitalismo de livre mercado distribui riqueza. O que Piketty mostra estatisticamente é que o capital tendeu, através da história, a produzir níveis cada vez maiores de desigualdade social. Esta é exatamente a conclusão teórica de Marx, no primeiro volume de sua versão de O Capital (Boitempo Editorial, São Paulo, 2013). Em O Capital de Marx, a desigualdade é vista não como o resultado da distribuição da riqueza como O Capital no Século XXI de Piketty apresenta, mas como um resultado inevitável da produção da riqueza sob o capitalismo. Hoje temos cada vez mais poucas famílias detendo quase a metade da riqueza global. A disparidade entre a remuneração média dos trabalhadores e dos executivos-chefes era cerca de trinta para um em 1970. Hoje está bem acima de trezentos para um e, no caso do MacDonalds, cerca de 1200 para um (OUTRAS PALAVRAS. David Harvey: leia Piketty, mas não se esqueça de Marx. Disponível no website <http://outraspalavras.net/posts/david-harvey-leia-piketty-mas-nao-se-esqueca-de-marx/>).

A Organização das Nações Unidas publicou um relatório sobre a situação da pobreza no mundo. A pesquisa do Pnud foi feita em 109 países, reunindo um contingente total de seis bilhões de pessoas. Desse total, o que foi apurado é que 1,3 bilhão de seres humanos – ou seja, um quarto da população investigada – vivem em situação de pobreza, o que é um dado muito estarrecedor. No Brasil, dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que o rendimento mensal dos 1% mais ricos do país é quase 34 vezes maior do que o rendimento da metade mais pobre da população. Esses dados mostram que a renda dos 5% mais pobres caiu em 3%, enquanto a renda dos 1% mais ricos aumentou em 8%. Cerca de 889 mil pessoas são consideradas ricas no Brasil. Este número representa apenas 0,42% da população brasileira. Aproximadamente 45 milhões de brasileiros vivem com um rendimento mensal que é inferior ao valor de um salário-mínimo. A população que se situa na pobreza no Brasil, segundo dados mais recentes do IBGE, corresponde a 52 milhões de habitantes dos quais 15 milhões de pessoas estão em situação de extrema pobreza. Entre aqueles que se situam em extrema pobreza e estão em situação de rua no Brasil são de aproximadamente 221.869 pessoas de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Pobres são, também, os que não possuem moradias, que não usufruem o direito à habitação, que totalizou 5,8 milhões de moradias em 2019, dos quais 79% concentraram-se em famílias de baixa renda.

Segundo Marx, toda riqueza na sociedade é produto do trabalho, criada pelos esforços físicos e mentais da classe trabalhadora. Os lucros, que significam o retorno sobre o capital, são como Marx explicou em O Capital (Boitempo Editorial, São Paulo, 2013) nada mais do que o trabalho não pago da classe trabalhadora, isto é, a diferença entre o valor que é produzido de bem ou serviço e o valor que reverte aos trabalhadores na forma de salários. Uma taxa crescente de lucro, portanto, apenas implica em uma exploração crescente da classe trabalhadora, o que significa necessariamente uma maior parte da riqueza na sociedade se acumulando nas mãos dos capitalistas. Marx demonstrou em seus três volumes de O Capital como, por vários meios, o capitalismo pode explorar a classe trabalhadora por maiores lucros: 1) estendendo a jornada de trabalho, através de uma intensificação do trabalho dentro de um dado tempo; e, 2) aumentando a eficiência e a produtividade dos trabalhadores, através da substituição de trabalho por máquinas etc. Tudo isto se reflete no aumento da proporção do trabalho não pago em relação ao valor do que é produzido pelos trabalhadores.

O contraste gritante entre o colossal desenvolvimento econômico, científico e tecnológico alcançado pela humanidade e a presença de imensos contingentes populacionais submetidos à fome, à pobreza e à miséria é prova cabal do absoluto fracasso do capitalismo como projeto civilizatório. Passados dois séculos e meio da Revolução Industrial, que consolidou as bases materiais do modo de produção capitalista, desencadeando uma escalada exponencial na produtividade do trabalho, mais de 1/4 da humanidade ainda vive diariamente o flagelo da fome. Da pobreza e da miséria. O problema reside na extrema concentração da renda e da riqueza. Numa sociedade totalmente mercantilizada, quem é privado de dinheiro não possui meio de acesso à comida. O crescente descompasso entre a ampliação desenfreada da riqueza e a perpetuação da pobreza com gigantescas carências sociais é uma realidade inerente à relação capital-trabalho. A fome, a pobreza e a miséria de grande parcela da população são a expressão máxima da desigualdade social inerente ao modo de produção capitalista. A presença de uma grande massa de trabalhadores empobrecidos que vivem no limiar da sobrevivência biológica rebaixa o nível tradicional de vida do conjunto dos trabalhadores. A pobreza e a miséria em grande escala funcionam, assim, como uma âncora que reduz o custo de reprodução da força de trabalho, potencializando a extração de mais valia e a elevação da taxa de lucro. A relação entre acumulação da riqueza e acumulação da pobreza é direta e inexorável.

A atual estratégia neoliberal de “enfrentamento” da pobreza com a adoção de políticas estatais de transferência de renda é diferente da concepção liberal clássica até o século XVIII, quando se pensava como causa da miséria o problema individual-pessoal de carência, e que respondeu a ela com a organização e o incentivo à filantropia, é diferente da política posta em prática pelos governos após 1835 na Europa, quando houve as lutas desenvolvidas pelo proletariado entre 1830-48, que consideravam a pobreza como mendicância e como crime, tratando assim dela com repressão e reclusão, e é diferente da orientação Keynesiana (século XX até a crise de 1973) que considerava a “questão social” como um problema produzido pelo desenvolvimento do capitalismo (ou como um insuficiente desenvolvimento), internalizando a “questão social” e tratando-a sistematicamente mediante a adoção de políticas sociais estatais com a concessão de direitos e por meio do fornecimento de bens e serviços.

Será que existe solução que leve â redução da desigualdade social? A resposta é a de que o fim da desigualdade social só será alcançada quando for implantado o Estado de Bem Estar social nos moldes do praticado nos países escandinavos com a necessária adaptação a cada país porque é o mais bem sucedido sistema social já implantado no mundo porque incorpora os elementos mais positivos tanto do socialismo como do capitalismo. De 2013 a 2020, a revista The Economist mostra que os países nórdicos são os mais felizes e os mais bem governados do mundo. O relatório World Happiness Report 2020 da ONU mostra que as nações mais felizes do mundo estão concentradas no Norte da Europa. Os nórdicos possuem a mais alta classificação no PIB real per capita, a maior expectativa de vida saudável, a maior liberdade de fazer escolhas na vida e a maior generosidade. Este modelo de sociedade deveria ser adotado porque ao longo da história da humanidade, o capitalismo liberal, o socialismo e o capitalismo neoliberal fracassaram na construção de uma sociedade econômica, social e politicamente justa e humana em vários países do mundo deixando como herança a barbárie que caracteriza o mundo em que vivemos.

A Escandinávia é, portanto, o berço do modelo mais igualitário que o capitalismo já conheceu. Sua origem remonta à Suécia dos anos 1930, quando se concretizava a hegemonia social democrata no governo do país nórdico, dando início a uma série de reformas sociais e econômicas que inauguraria um novo tipo de capitalismo, em oposição ao fracassado liberalismo das décadas anteriores. Nascia então o chamado modelo escandinavo, que rapidamente ultrapassaria as fronteiras suecas para se tornar influente no norte europeu, mas também uma referência importante na formulação de políticas econômicas heterodoxas (progressistas) em todo o planeta. O sucesso do modelo de Estado de Bem Estar social nos moldes do praticado nos países escandinavos se deveu à combinação de um amplo Estado de Bem-Estar Social com rígidos mecanismos de regulação das forças de mercado, capaz de colocar a economia em uma trajetória dinâmica, ao mesmo tempo em que alcançava os melhores indicadores de bem-estar social entre países capitalistas. Para acabar com a barbárie, promover o progresso econômico e social e estabelecer uma convivência civilizada entre todos os seres humanos urge a edificação de um novo modelo de sociedade que é, portanto, o Estado de Bem Estar Social nos moldes escandinavos adaptado às condições de cada país.

 

Por: Fernando Alcoforado, 82, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor de 15 livros abordando temas como globalização, desenvolvimento econômico e social no Brasil e no mundo, aquecimento global e mudança climática, energia no mundo e no Brasil, as grandes revoluções científicas, econômicas e sociais, ciência e tecnologia e cosmologia.

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