A fragmentação do conhecimento produzida pela instauração da ciência moderna e consolidada pelo modelo positivista de compreensão da realidade produziu benefícios inestimáveis no conhecimento do mundo e na criação de instrumentos que o dominassem e alargassem as possibilidades humanas. Por outro lado, o efeito colateral mais visível foi a negação da validade de qualquer outro tipo de saber, especialmente aquele relacionado às experiências subjetivas no qual se incluem a espiritualidade, os fenômenos psíquicos de alteração da consciência e a própria religião.
Na prática, isto significou entender a fé religiosa como fruto da ignorância ou de uma estrutura arcaica de pensamento centrada em possibilidades míticas e mágicas, cujos produtos seriam enquadrados quando válidos na ordem das leis científicas, ou simplesmente descartados por serem equívocos humanos.
Ainda que a hegemonia da ciência forjasse uma civilização e constituísse sua cosmovisão e progressivamente descartasse a presença de espiritualidade como fenômeno que valesse investigar, o povo e muitas inteligências lapidares continuaram a cultivá-la, estudando-a das mais variadas formas e se organizando como uma forma de resistência ao modelo científico empírico e racionalista. Dificilmente, entretanto, conseguiram ser vozes significativas no universo acadêmico, pois o assunto foi transformado em questão de foro íntimo.
A crise de conhecimento que se instaurou desde o início do século XX com o advento da mecânica quântica e relativística tornando imponderável a matéria, o surgimento da Psicanálise e a revalorização da subjetividade, o advento de pesquisas paranormais e a constatação da impotência do saber científico em controlar a agressividade humana, utilizando suas descobertas como um arsenal de guerra devastador para a sociedade ocidental, permitiu um redimensionamento do valor dos demais saberes, surgindo a necessidade de reintegrá-los em novos modelos de relação sob a forma do que denominamos transdisciplinaridade.
Neste contexto, passamos a perceber que o Cosmos é algo tão complexo que exige diferentes olhares para ser mais adequadamente compreendido. Cada olhar se apropria de universos diferentes, com objetos e sujeitos diferentes assim como espaço-tempo e motivações diferentes. E que entre eles há interfaces que podem ser trabalhadas de modo a ampliar o bem-estar geral. Empirismo, racionalismo e misticismo neste caso não se antagonizam. Pelo contrário, contribuem com elementos próprios para o sucesso do outro modo de saber. Sensibilidade, inteligência e contemplação são funções humanas que podem, quando sinérgicas, melhor construir uma visão de mundo em diferentes perspectivas.
Quando os estudiosos se deram conta desta possibilidade, resgataram o valor das experiências de transcendência, voltaram às fontes da tradição sapiencial, e passaram a incluir a espiritualidade como uma dimensão humana que não pode ser negligenciada. Na atualidade, ela é reconhecida como dimensão existencial pela Organização Mundial de Saúde e faz parte de muitos currículos médicos.
A pós-modernidade se debruça sobre esta dimensão pensando-a de várias maneiras:
Primeiro como a culminância das várias linhas de desenvolvimento à semelhança do transpessoal. Assim nada há em matéria de espiritualidade pré-racional ou racional.
Tudo ocorre nos mais elevados níveis e correspondem à intuição transrracional da linha cognitiva, o amor transpessoal da linha afetiva, as mais elevadas aspirações éticas da linha moral.
Segundo como uma linha de desenvolvimento própria e, portanto, aprimorando-se através de estágios, desde o pré-pessoal ao transpessoal e lhe rotulam como inteligência espiritual.
Terceiro como uma experiência culminante, meditativa ou um estado existencial como aqueles descritos no misticismo de Evelyn Underhill, ou nas variedades de experiência religiosa de William James.
Quarto como uma atitude de sacralidade que pode estar presente em qualquer estágio.
Quinto como uma realidade transexistencial que caracteriza a vida pós-morte.
Qualquer que seja a maneira que pensemos a espiritualidade, ela exige a organização de uma prática e um olhar adequados. Seu trabalho principal é a transmutação da consciência, portanto, muito mais profundo que a mudança de concepções sobre o mundo. Vivendo-a, estaremos nos candidatando a desenvolver um maior sentido de integralidade na existência para além da fragmentação moderna e sem os riscos de novos reducionismos pós-modernos.
André Luiz Peixinho – Fundador da Sociedade Hólon