Entender e tratar a dependência química

Por Cirilo Tissot, Diretor da Audeamus; médico associado a Associação Brasileira de Estudos sobre Álcool e Drogas; Mestre em psiquiatria pelo IPq-USP

 

A dependência química é uma condição física caracterizada por tolerância ao uso de determinada substância, desenvolvendo a necessidade do aumento da dose para se obter o mesmo efeito inicial. Conjuntamente, quando da suspensão do uso, observa-se o aparecimento de uma síndrome de abstinência, com características específicas à substância química utilizada. E o protocolo para o diagnóstico deste tipo de dependência vem da observação clínica dos sinais de tolerância e síndrome de abstinência.

 

De modo geral, existe uma confusão do termo,  associando a dependência química como sinônimo de “vício “. Isso não é verdade. Pois ter vício, etimologicamente, significa ter falha ou defeito, sendo causado conscientemente pelo indivíduo. Há muitos anos a Organização Mundial da Saúde qualificou o que se entendia por vício como doença física e psicoemocional, alterando a forma como a medicina deve lidar com as pessoas acometidas por essa doença.

 

Assim, o transtorno do uso de substâncias, modo atual de se designar o vício, possui origem multicausal. Este transtorno tem como base etiológica características genéticas, sociais e biológicas, causando confusão de entendimento nas pessoas, quando restringimos a origem do problema da compulsão somente a dependência física do corpo.

 

Como as pessoas vivem em núcleos familiares e de amigos, são estes que, inicialmente, conseguem perceber que algo está fora do que se pode considerar normal.

 

Os primeiros sinais para os quais os familiares devem ficar atentos são a perda do controle caracterizado por faltar em compromissos assumidos; o aumento do gasto de energia e tempo para procurar, consumir e se recuperar do uso; a tendência ao isolamento, principalmente das atividades familiares; relatos de que irá diminuir o consumo sem sucesso; o aparecimento de problemas psicológicos e físicos causados pelo uso frequente ou intenso da droga, sem contrapartida positiva reparadora, aumentando o consumo; o estilo de vida pautado na satisfação dos próprios desejos e com mudança dos valores anteriormente praticados; a mudança na rede de amigos e, por fim, o afastamento de escolhas que possam trazer bem estar por escolhas que tragam euforia ou alívio emocional.

 

A parte mais importante quando percebemos que um ente querido está precisando de ajuda é enfrentar o obstáculo do orgulho e o medo do estigma. Na família e da vítima da doença. De um lado, ter crítica do próprio descontrole significa admitir uma fragilidade em um momento em que todos estão pedindo por força de vontade. De outro, ter firmeza para não entrar em estado de negação sobre o que está acontecendo ou discriminar o familiar.

 

Neste ponto é muito importante, antes de iniciar uma conversa sobre o tema, que o familiar se informe sobre o tema para não ser vetor de preconceito.

 

Entender a doença significa não culpar o indivíduo de algo que ele não tem controle, mas apoiar a pedir ajuda especializada e a reparar escolhas malfeitas. Enfrentar o problema significa responsabilizar-se por suas atitudes, tentando mudar o que é possível e aceitando o que não pode ser modificado, naquele momento. Oferecer apoio para procurar ajuda é muito importante, nem que seja para marcar uma consulta, pelo indivíduo, para facilitar.

 

Se houver mais do que uma pessoa preocupada, fazer uma intervenção conjunta propicia a procura por ajuda.

 

De qualquer forma, preparar um contexto para que possa haver uma conversa íntima, como convidar para um jantar em um restaurante, valoriza o que vai ser dito.

 

A melhor ajuda é aquela que está disponível, de imediato, pois é muito fácil a pessoa mudar de opinião, ao aceitar pedir ajuda. Mas a melhor opção é procurar profissional especializado em transtorno do uso de substâncias ou procurar ambulatórios especializados.

 

Isso deve ser levado em conta porque existe a tendência dos familiares procurarem clínicas ou comunidades terapêuticas com a ideia de que a internação seja a melhor escolha. A internação é uma indicação médica, como qualquer prescrição medicamentosa, não sendo considerado padrão ouro de reabilitação. A voluntariedade ao tratamento é sempre a melhor escolha.

 

A medicina baseada em evidências constatou que a responsabilidade maior no surgimento dos transtornos do uso de substâncias químicas é de origem genética, como uma predisposição ao uso arriscado, como se faltasse uma trava de segurança, que avisa o usuário sobre o momento de parar.

 

O fato de ser a genética muito importante, como um dos fatores causais do vício, não quer dizer que seja hereditário. Mas existe sim uma maior probabilidade do desenvolvimento de compulsão por drogas na criança que tem ambos os pais acometidos pelo problema.

 

Toda esta preocupação se justifica porque estamos vivendo um momento da sociedade onde os direitos individuais estão sendo mais valorizados do que os direitos da sociedade sobre o indivíduo. Quanto mais valorizamos a autonomia do indivíduo, mais nos deparamos com a sensação subjetiva de insegurança. A euforia e a anestesia produzida pelas drogas garantem a coragem para aventurar-se , rompendo as fronteiras que garantiriam a segurança. O hedonismo está em moda e com ele a insatisfação aumenta, junto com a sensação de vazio, por não haver mais uma conectividade com valores maiores da sociedade. Pôr o ego acima de tudo não reforça a identidade, apenas distorce visão sobre o mundo e as formas de acesso para alguém se sentir feliz.

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