Má nutrição na primeira infância fere direitos fundamentais e pode causar efeitos irreversíveis

 *Zenaide de Abreu Guerra 

Atualmente no Brasil, quase um terço da população (32,8%) está em situação moderada ou grave de insegurança alimentar, de acordo com o último relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o SOFI 2023. Estamos falando de 70,3 milhões de brasileiros sem acesso regular a alimentos suficientes e nutritivos. Para efeitos comparativos, equivale a quase sete vezes a população inteira de Portugal privada de direitos básicos e fundamentais previstos na Constituição Federal, que são o da alimentação adequada, vida e dignidade.

É grave o fato do aumento em 14% o número de crianças de até 5 anos com baixo crescimento no Brasil. São 7,2 milhões nessa situação e 3,1 milhões em condição de risco pela ingestão insuficiente, baixa absorção de nutrientes e/ou com frequência prolongada de doenças. É cientificamente provado que o desenvolvimento pleno das crianças começa e depende da fase gestacional. Considerando que a insegurança alimentar afeta mais mulheres que homens no mundo todo, e 31,9% delas vivem em nível moderado ou grave, podemos concluir que nossas crianças estão sendo impactadas por essa difícil realidade antes mesmo de nascerem.

A segurança alimentar, comprometida para milhões de brasileiros, representa uma negação aos direitos fundamentais da Constituição além de violação do artigo 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente, que prevê o direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso; além de ser uma violação à Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, de 2006, na garantia ao direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente.

E é por isso que precisamos trazer esse assunto para debate. A primeira discussão passa pela definição do que se compreende a “primeira infância”, a fase mais importante do desenvolvimento do ser humano. Embora o ordenamento jurídico brasileiro considere esse período como o do nascimento até os 6 anos de idade, órgãos internacionais defendem que ela deva ser considerada desde a concepção, trazendo um olhar igualmente criterioso para nutrição da mãe, uma vez que qualquer limitação de desenvolvimento cerebral nessa fase e nos primeiros anos de vida terá impacto quase sempre irreversível. É quando se define todo o desenvolvimento das estruturas e circuitos cerebrais, resultando na aquisição e estruturação das capacidades fundamentais que proporcionam o aprimoramento de habilidades futuras mais complexas, como as cognitivas, emocionais e sociais.

As restrições no desenvolvimento físico e cognitivo decorrente da insegurança alimentar na primeira infância trazem consequências sérias e irreversíveis na vida adulta e acabam por afastar daquele indivíduo uma gama de possibilidades no convívio e inserção social, nas relações pessoais, em sua participação ativa no mercado de trabalho, na execução de atividades intelectuais, dentre outros. Defender a segurança alimentar na primeira infância é defender a preservação da dignidade e garantir que o indivíduo possa se desenvolver plenamente.

Neste mês de outubro, mês que se comemora o Dia das Crianças, a Comissão de Bioética e Biodireito da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), da qual faço parte, tem se unido em uma série de ações para fomentar o debate jurídico e discutir políticas públicas e programas para garantir os direitos fundamentais da saúde e alimentação saudável no Brasil. Uma das soluções que defendemos é que sejam oferecidos alimentos básicos fortificados, como o arroz, que é o mais consumido do mundo – seja em programas de oferta direta de alimentos ou por meio das escolas. Essa é, inclusive, uma recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para reduzir as deficiências nutricionais e melhorar os índices de ingestão de micronutrientes de milhões de pessoas.

Como demonstrado no estudo “Fortifying Food Markets”, de Christina Tewes-Gradi, pela Harvard Kennedy School, explorar o desafio de aumentar a fortificação de alimentos básicos para combater a deficiência de micronutrientes é uma solução eficaz e econômica. Hoje, segundo o estudo, 154 países têm uma norma para pelo menos um alimento veículo e 143 países tornaram obrigatória a fortificação de pelo menos um alimento básico. O desafio é a implementação e, nesse ponto, a autora defende que as parcerias público-privadas podem criar o ecossistema necessário.

Temos alguns exemplos positivos de fortificação na América Latina. A Costa Rica é um exemplo e modelo em leis mandatórias de fortificação de alimentos básicos. No Peru, o Programa Nacional de Alimentação Escolar já conta com uma ação em que quase 2 milhões de crianças consomem arroz fortificado com ferro, zinco, vitamina A, D, E, tiamina, niacina, piridoxina, vitamina B12 e ácido fólico, gerando impactos positivos em seu desenvolvimento. No Brasil, por sua vez, há um programa do Ministério da Saúde, iniciado em 2013, que fornece a suplementação das crianças em creches com os sachês de micronutrientes para serem misturados em sopas e mingaus e, assim, suprir as necessidades básicas nesta fase.

Outra ação crucial, feita no Chile, foi o reforço de nutrientes para as mulheres em fase gestacional, em que milhares de gestantes, nutrizes e crianças de até 3 anos de idade foram beneficiadas mensalmente pelo Programa Purita Mama, por meio do fornecimento gratuito de bebidas lácteas com ômega 3, vitaminas e minerais, melhorando a saúde da mãe e dos filhos, com comprovado aumento no desenvolvimento psicomotor infantil.

Além de ser um direito fundamental, há também impactos econômicos positivos, sendo considerada por economistas como o melhor investimento a ser realizado na saúde global e no desenvolvimento, em suas mais diversas dimensões, com retornos financeiros, incluindo a redução de gastos e investimentos em planos de saúde ou assistência médica, além de uma maior produtividade. Defender a segurança alimentar na primeira infância é investir no futuro de toda uma nação e é defender a preservação da dignidade de sua população, garantindo plenas condições de desenvolvimento.

Foto: UNICEF

 

* Zenaide de Abreu Guerra é membro da Comissão de Bioética e Biodireito

da OAB-SP e diretora de Relações Institucionais da dsm-firmenich latam

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